sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Breve descrição do irracionalismo moderno

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Último tratamento: 16/01/2023.
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Características
 
O termo irracionalismo moderno designa uma tradição filosófica decadente bem heterogênea. Ele é parte do processo de decadência ideológica burguesa, que se afirma no plano histórico-universal no ano de 1848 (Primavera dos Povos) quando a burguesia — e, consequentemente, a sua visão de mundo e metodologia — deixa de ser revolucionária e passa a ser contrarrevolucionária. Essa corrente irracionalista tem o seu embrião incorporado sistematicamente numa teoria filosófica moderna no conceito schellinguiano de “intuição intelectual” e se manifesta de diferentes formas e influências posteriormente.
 
O irracionalismo, como gnosiologia, subjuga a razão a uma estrutura maior, que é irracional (intuição, vivência, inconsciente...), e, como leitura (ontológica e histórica) decadentista, enxerga a razão civilizatória/projeto iluminista como fonte intrínseca dos males modernos (uma concepção contra-iluminista). Ou seja, é uma crítica ao mundo capitalista consolidado — mundo esse que, de forma generalizada, fetichiza mercadorias e coisifica seres humanos —, mas é uma crítica sem a perspectiva socialista de superação (Aufhebung) desse sistema ou que se posiciona de forma sectária em relação ao socialismo real.

Algumas características que floresceram nessa tradição:

* intuicionismo: intuição > razão.

* relativismo: o subjetivismo romântico cultiva, em algum grau, o fetiche da relatividade cognitiva, com implicações epistemológicas e éticas.

* aristocratismo: no âmbito cultural e político é a sobrevivência de um ethos da velha ideologia elitista. Na teoria aristocrática do conhecimento, a ideia de que a teorização é restrita a certos “grupos eleitos”, ocorre tanto em concepções conservadoras e religiosas quanto em concepções progressistas do pós-estruturalismo, em que a “vivência” elege certos especialistas em determinado assunto.

* tecnofobia: não conseguindo diferenciar corretamente a técnica enquanto categoria universal e a sua forma particular aplicada na manipulação estranhadora, os anticapitalistas românticos tendem, em algum grau, a menosprezar o trabalho material e a técnica e reduzi-los à práxis de alicerce. O conceito weberiano-frankfurtiano de “razão instrumental” é uma explicitação dessa postura metafísica.

* pessimismo ontológico: condenação a-histórica à uma “condição humana” angustiante para o “indivíduo-mônada”, o que resulta em algum grau de moral niilista.

* escapismo: elogio da fuga individualista do mundo antagônico através da religiosidade, da arte, da esbórnia etc.

* apolitismo: condenação moralista da participação político-institucional e, às vezes, conectado a isso, o sectarismo do ativismo isolado.

* transgressão: postura anarco-individualista baseada em transgredir as superestruturas, descartando a perspectiva revolucionária na superação da sociedade capitalista.
 
* espontaneísmo: perspectiva ultrarrevolucionária que fetichiza a capacidade espontânea das camadas populares de se auto-organizar politicamente e de conduzir manifestações e rebeliões sem a necessidade de uma vanguarda política.

* autocracia capitalista: é quando a ditadura da burguesia se torna uma ditadura em sentido estrito; um estado bonapartista no lugar da democracia formal.
 
* apologia indireta do capital: ao considerar o mundo capitalista como um trágico destino não superável (no máximo, reformável), boa parte dos românticos faz uma apologia à eternidade do capital. No caso dos socialistas sectários e moralistas, a apologia indireta ocorre pelo desprezo ao governos populares avançados e ao socialismo real.

Correntes e teóricos

No âmbito ontológico-gnosiológico, as correntes irracionalistas são:
  • Naturphilosophie
  • Vitalismo
  • Psicanálise
  • Lebensphilosophie
  • Existencialismo
  • Pós-estruturalismo
No âmbito estético:
  • Arte edificante  (visão panfletária, familista e/ou dramático-maniqueísta — não surgiu com o movimento romântico, mas foi a partir daí que se padronizou e massificou.)
  • Arte niilista (visão ultrarromântica, mórbida e ilhada; ou ainda, qualquer nível exagerado de abstração voltado a si mesmo, contemplando o absurdo.)

No âmbito econômico: 

  • Romantismo econômico (é a economia camponesa, artesã e do chamado terceiro setor em várias expressões: agricultura familiar, cooperativismo, mutualismo, economia solidária, filantropia, comunidade utópica etc.)
Nos âmbitos político e moral, o anticapitalismo romântico pode ser dividido em quatro principais tendências (que, por sua vez, possuem suas divisões internas):
  • Fascismo
  • Conservadorismo
  • Socialismo libertário
  • Trotskismo
Uma grande tarefa da filosofia emancipatória (materialismo dialético) é combater essa destruição da razão e peneirar a obra de grandes pensadores ligados a este campo, para ver se há algum “trigo” a acrescentar à teoria social, livre do “joio” irracionalista.

Alguns dos principais herdeiros de Schelling:

Schopenhauer, Kierkegaard, Stirner, Proudhon, Nietzsche, Dilthey, Simmel, Kropotkin, Spengler, Weber, Heidegger, Jaspers, Rosenberg, Ortega y Gasset, Freud, Adorno, Scheller, Horkheimer, Sartre, Arendt, Jung, Kuhn, Foucault, Derrida, Baudrillard, Postone, Lyotard, Deleuze, Lacan, Kurz, Boff, Rorty, Butler, Boaventura, Žižek, Dugin, Negri et alii.

Relações com outras ideologias

1ª observação: Como expressão política e moral, o irracionalismo não é um elemento presente apenas em autores de direita e extrema direita (conservadorismo e fascismo). Para além do chamado socialismo de direita, uma mera retórica de parte do conservadorismo, surge, no início do século 19, o socialismo crítico-utópico. Destaque para os reformistas Saint-Simon, Fourier e Owen, que, apesar de suas insuficiências teóricas, são pioneiros e desbravadores do socialismo moderno naquele período de transição.
 
Embora na sua configuração moderna (operária e industrial) seja impossível ser predominantemente romântico, pois visualiza e almeja a superação dialética do capitalismo, o socialismo progressista e romantizado é, em maior ou menor medida, uma revolta cognitivamente juvenil, pequeno-burguesa e boêmia, e se desenvolve dando origem à tradição do anarquismo — com vertentes de política ultrarrevolucionária e outras meramente econômico-reformistas e de estilo de vida (morais) —, ou seja, o início do sectarismo socialista, o gauchisme. Esse esquerdismo, a partir do século 20, gera três dissidências no movimento comunista: o marxismo libertário (o marxismo-spontex que compõe o socialismo libertário junto com o anarquismo), o trotskismo e o maoismo (não confundir esse maoismo com o Pensamento de Mao Zedong e o Governo Mao; trata-se de uma corrente política sectária e foquista que enxerga o legado de Mao como uma síntese universal e aplicável mundialmente).
 
Já no plano filosófico (e metodológico), isso gera uma nova variante de protomarxismo, o marxismo romântico. Nesse sentido, nem tudo, mas boa parte do que se chamou de “marxismo ocidental” e “marxismo heterodoxo” é a variante subjetivista e romantizada da filosofia protomarxista, com seu característico culturalismo, sectarismo e moralismo.
 
2ª observação: a decadência ideológica burguesa não implica somente no irracionalismo moderno. Há, junto a ele, outra tradição filosófica decadente: o racionalismo formal, que filia pensadores como Durkheim, Russell, Habermas, Skinner e M. Bunge, e que significa a miséria da razão. No âmbito político e econômico, é possível ver uma combinação romântico-tecnocrática com as variantes de conservadorismo liberal, fascismo liberal e anarcocapitalismo.

Portanto, não há nenhuma ideologia “inocente”, como disse Lukács. Nesse sentido, temos que analisar a arte e a teoria (filosofia e ciências), principalmente a teoria social (ciências humanas), em si, em seus fundamentos, coerência e função histórica, independente das (boas) intenções de seus porta-vozes.

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