domingo, 25 de janeiro de 2015

Autogestão e emancipação dos trabalhadores: limites das cooperativas na produção capitalista


por Martín Andrés Moreira Zamora[1]

Apresentação

O presente trabalho é uma reflexão sobre as experiências de autogestão produtiva. O objetivo é compreender os limites que esses empreendimentos apresentam quando colocam em seu horizonte de ação a emancipação do trabalho da lógica do capital.

Na atualidade, há um grande número de experiências de empreendimentos autogestionários. Na América Latina, com o desenvolvimento de políticas neoliberais nos anos 1990, o desemprego estrutural levou muitos trabalhadores a buscar alternativas de subsistência fora do mercado de trabalho formal. Além disso, com o fim do protecionismo e um elevado grau de desnacionalização da economia, diversas empresas fecharam seus parques produtivos. Algumas dessas empresas foram ocupadas pelos seus trabalhadores que, após um período de luta, conseguiram retomar as atividades produtivas. Esse cenário se verificou com mais força no final da década de 1990 no Brasil; no início dos anos 2000 na Argentina, principalmente depois da crise de 2001; e se verifica agora na Europa, principalmente em países que se encontram atingidos diretamente pela crise econômica de 2008, como é o caso da Grécia, Espanha e Portugal.

As fábricas recuperadas não são os únicos empreendimentos autogestionários, encontram-se junto a esses outras formas de associativismo, como cooperativas de produção e serviços, coletivos de economia solidária, entre outros. Neste trabalho, a reflexão se restringe aos empreendimentos autogestionários de caráter produtivo, dirigidos pelos seus trabalhadores, que chamaremos a seguir de cooperativas[2].

Ao assumir a direção de uma unidade produtiva, os trabalhadores se encontram com um ambiente que lhes é hostil. Se a empresa é recuperada, é comum que encontrem um parque produtivo em más condições, seja pela obsolescência ou falta de manutenção, há dívidas para administrar, geralmente vinculadas a fornecedores e clientes, etc. Sobra aos trabalhadores viabilizar economicamente aquilo que os seus patrões capitalistas levaram à falência. Mesmo quando essa situação é superada, resta aos produtores associados enfrentar o mercado, lutando entre fornecedores, clientes e concorrentes para que sobre aos produtores uma parte da mais-valia distribuída, suficiente para remunerar a reprodução da força de trabalho.

Apesar da mudança de propriedade jurídica dos meios de produção, as cooperativas continuam produzindo mercadorias, ou seja, valores de troca que se transformam em capital para logo voltar à produção, continuando o ciclo de reprodução ampliada. Assim, os trabalhadores são obrigados a se submeter à lógica auto-reprodutiva do capital, que, por sua vez, os obriga a cumprir o papel que anteriormente cabia ao capitalista, aumentado o ritmo de trabalho e diminuindo o custo de sua reprodução quando for necessário.

A crítica aqui realizada não tem o objetivo de desmerecer o esforço daqueles trabalhadores que frente ao fechamento de empresas capitalistas, num cenário de crise estrutural do capital e na iminência do desemprego, se organizaram para defender seus postos de trabalho. Não se pretende discutir a sua importância para garantir a reprodução da vida, mas as afirmações de que se constituem na construção de alternativas à lógica do capital. Essa crítica está comprometida com a emancipação do trabalho. Assim, aponta que para superar a lógica sociometabólica do capital não é suficiente alterar as relações de propriedade, é necessário superar a lógica do seu sistema orgânico.

Autogestão e crise estrutural

O capital, enquanto relação social de produção, é fruto de um processo histórico que permitiu que esse se tornasse hegemônico e que a sua hegemonia alcançasse as mais distantes partes do mundo, fazendo desse o primeiro modo de produção de alcance planetário. Por se tratar de uma das possibilidades do movimento da história, tanto o capital quanto o seu modo de produção hegemônico, o capitalismo, estão condenados ao desaparecimento.

Para Mészáros (2002), a sociedade capitalista está assentada num tripé formado pelo Estado, o trabalho assalariado e o capital. O autor denomina essa articulação de sociometabolismo do capital. Ela exige uma coordenação hierárquica fundada na lógica de autoridade e submissão, fazendo com que cada estrutura da sociedade tenha uma minoria que comanda e uma maioria que obedece. Essa estrutura é imprescindível para a sua constante reprodução:

A articulação hierárquica e contraditória do capital é o princípio geral de estruturação do sistema, não importa o tamanho de suas unidades constituintes. Isso se deve à natureza interna do processo de tomada de decisões no sistema. Dado o antagonismo estrutural inconciliável entre capital e trabalho, esse último está categoricamente excluído de todas as decisões significativas. Isso não se dá apenas no nível mais geral, mas até mesmo nos 'microcosmos' constituintes desse sistema, em cada unidade de produção. Pois o capital, como poder alienado de tomada de decisão, não pode funcionar sem tornar suas decisões absolutamente inquestionáveis (pela força de trabalho) em cada unidade produtiva, pelos complexos produtivos rivais do país, em nível intermediário ou, na escala mais abrangente, pelo pessoal de comando de outras estruturas internacionais concorrentes. É por isso que o modo de tomada de decisão do capital – em todas as variedades conhecidas ou viáveis do sistema do capital – há forçosamente de ser alguma forma autoritária de administrar empresas do topo para a base (MÉSZÁROS, 2002, p. 27)

Devido às suas contradições endógenas, o capitalismo produz crises cíclicas ou periódicas. Um exemplo marcante na história é a crise de 1929 que, apesar das suas proporções altamente destrutivas, se resolveu com êxito e foi seguida pelo período de maior expansão do capital. Essa capacidade de resistir às crises e às limitações impostas é o que Mészáros chama de transposição dos limites do capital. Quando o movimento do capital encontra limites que não podem ser transpostos, trata-se da ativação dos limites intransponíveis deste sistema. De forma sucinta, pode-se afirmar que uma crise deixa de ser cíclica e se torna estrutural quando os limites do capital se tornam intransponíveis, já que este não consegue mais assimilar as novas contradições historicamente enfrentadas (MÉSZÁROS, 2007).

Um ponto central na teoria de Mészáros (2007) é a incontrolabilidade do sociometabolismo do capital. Para ele, o capital opera com uma lógica que é própria do seu sistema e que não permite qualquer intervenção que não se encontre de acordo com ela. Assim, qualquer tentativa de frear ou reformar seu funcionamento acabará em fracasso. Nas palavras do autor,

A dificuldade insuperável a esse respeito é que o sistema do capital, como um modo de controle reprodutivo societário, deve seguir a qualquer custo sua própria lógica, correspondente às suas determinações estruturais objetivas. A direção auto- expansiva do capital não pode refrear a si mesma em virtude de alguma consideração humana, simplesmente porque essa consideração pareceria moralmente mais palatável, como a automitologia do “capitalismo caridoso” e do “capitalismo popular” gostaria de nos fazer acreditar. Ao contrário, a lógica do capital é caracterizada pela destrutividade autovantajosa, uma vez que tudo que se encontra no caminho do cruel impulso expansivo do sistema deve ser naturalmente varrido ou esmagado, se preciso. De outro modo, o avanço auto-expansivo do capital seria rapidamente interrompido, e em pouco tempo o capital, como modo de controle sociometabólico, acabaria por implodir (MÉSZÁROS, 2007, p. 318).

Para Mészáros (2002), as saídas para a crise que foram apontadas no passado não se apresentam mais como alternativa porque a crise que está sendo enfrentada nesse momento não é mais uma das crises cíclicas, é uma crise estrutural. Segundo o autor, são vários os elementos que apontam para esse diagnóstico. O primeiro elemento de análise é a extensão da crise. Trata-se de um fenômeno de alcance verdadeiramente global. Como apontam Mathias e Zamora (2010, p. 4),

Ironicamente, a globalização do capital traz consigo a globalização da crise do capital e a capacidade cada vez menor de deslocar as suas contradições endógenas. Desta forma, a crise estrutural não se limita a apenas um país específico ou a um conjunto de países (como foram as crises no passado), torna-se uma crise verdadeiramente global mesmo que não atinja todos os países no mesmo tempo e da mesma forma.

O segundo elemento é que uma crise estrutural do sistema atinge o complexo social como um todo, assim como suas partes articuladas. Por isso, ela não se restringe a uma de suas esferas. Não se trata, então, de uma crise financeira, de uma crise imobiliária ou de uma crise de determinado setor da produção. A manifestação da crise pode começar por um determinado setor, mas atinge a totalidade do sistema.

Outro elemento apontado por Mészáros (2007) é a escala de tempo da crise, que é extensa e contínua. Diferente dos ciclos de expansão que conformaram o capitalismo ao longo de sua história, alternando períodos de expansão e de crise, desde o fim dos anos 1960 e início dos 1970 ocorre uma contínua depressão. O que comumente se chama de crise é a eclosão de precipitações (ou erupções) cada vez mais frequentes e contínuas. Da mesma forma, o modo que a crise estrutural se desdobra é rastejante, já que não se explica pela profundidade da depressão, mas pela incapacidade de recuperação do antigo potencial de realização do valor.

Apontar que essa crise é estrutural, não significa de forma alguma defender que o fim do capitalismo está próximo e que em breve o socialismo nascerá como se fosse o sol. Diferente disso, há de se concordar com Rosa Luxemburgo quando aponta que o socialismo não é o destino certo da humanidade. A barbárie é uma possibilidade que deve ser enfrentada quando pensamos o futuro do planeta.

Até o presente momento, as soluções para a crise que vêm sendo apresentadas pelos organismos multilaterais, governos de diferentes países e grandes capitais, oscila entre radicalizar o modelo de liberalização econômica que vem sendo implementado ou retornar a uma maior regulação pelo Estado, seguindo os ensinamentos da crise de 1929 (HARVEY, 2011). Se continuar com o modelo vigente é aumentar o problema, qualquer esforço para controlar a lógica autoexpansiva do capital é inútil.

Se o capital não consegue apresentar alternativas à crise atual, quais são as alternativas apresentadas pela classe trabalhadora? Paniago (2008) afirma que a história do século XX demonstra que a classe trabalhadora pouco tem avançado na tarefa de construir sua autonomia e independência de classe, permanecendo, assim, ora vulnerável à cooptação pelo Estado mediante a ideologia da negociação de classe, ora se submetendo aos imperativos acumulativos e expansionistas do capital e à exploração intensificada do trabalho quando o capitalismo se encontra em crise.

A autora aponta que o ascenso das lutas populares no final da década de 1980 permitiu o surgimento de inovações dos mecanismos de participação democrática, como o orçamento participativo, os conselhos de controle social e as experiências de cooperativas e autogestão[3] de empresas pelos trabalhadores. O surgimento e/ou fortalecimento dessas iniciativas relacionam-se com o recrudescimento da crise estrutural do capital e com a implantação de políticas neoliberais. Assim, a pretensão desses mecanismos “é ampliar o controle da sociedade civil sobre o Estado e o mercado, constituindo uma nova hegemonia de poder dos trabalhadores”(PANIAGO, 2008, p. 4). Para a autora, este mecanismos desencadearam uma curiosidade investigativa para verificar, se de fato, houve avanços em direção há libertação dos trabalhadores em relação à subordinação e dependência do capital, ou se estes, “se revelaram como instrumentos renovados de dominação do capital, seja na esfera do Estado, seja na esfera do mercado”(PANIAGO, 2008, p. 4).

O foco deste trabalho, como mencionado anteriormente, são as cooperativas autogeridas pelos trabalhadores. Essas experiências surgiram, principalmente, a partir da situação de empresas que, por diversos motivos, principalmente a falência, encerraram suas atividades. Essa atitude por parte dos antigos proprietários levou os trabalhadores a ocupar as fábricas e retomar a produção em defesa dos seus postos de trabalho (NOVAES, 2007; PANIAGO, 2008; VIEITEZ e DAL RI, 2001).

Em muitos casos, os trabalhadores que decidem participar da ocupação de uma planta produtiva são aqueles que têm poucas opções, seja pela dificuldade individual em encontrar outra colocação no mercado, seja pelo cenário de crise e desemprego estrutural que faz da busca de um novo emprego uma façanha cheia de incertezas. Verifica-se nos estudos aqui referenciados que, na maioria dos casos, os postos que exigem maior qualificação técnica, assim como os postos de gestão, não costumam participar da recuperação dos empreendimentos.

Segundo Vieitez e Dal Ri (2001), os empreendimentos recuperados apresentam problemas importantes que os levaram a fracassar na disputa de mercado. Entre eles cabe citar a defasagem tecnológica de alguns equipamentos e a produção de mercadorias que não conseguem fácil colocação no mercado[4].

Ao trabalhador desempregado, antevendo a possibilidade de não receber os passivos trabalhistas, não resta outra opção que “herdar” a planta produtiva nas condições em que ela se encontra, tendo a tarefa de tornar viável o empreendimento que os antigos patrões levaram à bancarrota.

Como bem aponta Paniago (2008), “o caráter de autogestão apontado nos parece ter muito a ver com um procedimento de transferência de responsabilidade, aos trabalhadores, dos prejuízos sociais provocados pela incapacidade empresarial dos antigos patrões de sobreviverem no capitalismo em crise” (PANIAGO, 2008, p. 7). Assim, as experiências produtivas autogestionárias acabam por atuar,

[…] como meio de socialização do ônus da crise junto aos trabalhadores, e não como um ato de conquista de autonomia do trabalho da subordinação hierárquica do capital. É uma alternativa, portanto, imposta pelas circunstâncias e não uma opção estratégica emancipatória que pretenda promover alterações substantivas na relação de subordinação ao capital e nas relações dominantes do mercado capitalista (PANIAGO, 2008, p. 7).

Mesmo quando a cooperativa consegue ser autogestionária “da porta para dentro”, não deixa de sofrer as consequências de participar do mercado capitalista. Diferente daquilo que afirmam os defensores do mercado, esse está muito longe de ser um espaço democrático ou libertador. Com o forte processo de concentração e centralização do capital, o mercado globalizado vem sendo dirigido por grandes corporações, restando às empresas menores encontrar nichos de mercado. São as grandes corporações as que detêm o poder de determinar o preço dos produtos, o padrão de qualidade e o processo de produção mais eficiente.

As cooperativas, que não podem excluir-se do mercado, continuam presas à lógica de produção e distribuição do capital, produzindo mercadorias que devem ser vendidas independente do seu valor de uso. A sua produção deve ser realizada seguindo o esquema geral da produção capitalista (D-M-D'). Se o fato de não haver um patrão capitalista permite que a cooperativa distribua entre seus trabalhadores o ganho que a ele cabia, o mesmo não acontece com as remunerações dos demais capitais, como é o caso do lucro comercial, do juro, da renda da terra e dos tributos. Em muitos casos, os fornecedores e os clientes detêm maior poder de negociação no mercado, impondo preços e prazos que acabam achatando os ganhos com a produção. Sem falar nas práticas de concorrência desleal que empresas de maior porte e com maior capital podem realizar para eliminar uma concorrente do mercado[5].

Em sua polêmica com Bernstein no início do século XX, Rosa Luxemburgo (1986) já apontava os limites de tentar superar a lógica do capital a partir da organização da produção em cooperativas. Apontando as contradições próprias dessa relação de produção no interior da sociedade capitalistas a autora afirmava:

As cooperativas e sobretudo as cooperativas de produção são instituições de natureza híbrida dentro do capitalismo: constituem uma produção socializada em miniatura que é acompanhada por uma troca capitalista. Mas na economia capitalista a troca domina a produção; por causa da concorrência exige, para que a empresa possa sobreviver, uma impiedosa exploração da força de trabalho, quer dizer, a dominação completa do processo de produção pelos interesses capitalistas. Praticamente, isso traduz-se numa necessidade de intensificação do trabalho, de encurtar ou prolongar a sua duração conforme a conjuntura, de contratar ou dispensar a força do trabalho conforme as necessidades de mercado, numa palavra, praticar todos os métodos, sobejamente conhecidos, que permitam a uma empresa capitalista sustentar a concorrência das outras empresas (LUXEMBURGO, 1986, p. 87-88).

Essas contradições entre a perspectiva autogestionária para dentro da organização e a relação em um mercado hierarquizado fora dela, obrigam os trabalhadores a cumprir as funções dos antigos capitalistas, como será visto na próxima seção.

As pessoas passam, o capital continua

Um tema importante é a necessidade dos trabalhadores em assumir o papel da personificação do capital. Deve-se lembrar que para Marx (1988), o capital não se resume a um conjunto de máquinas e equipamentos no processo de produção ou a uma certa quantidade de dinheiro ou mesmo a um conjunto de trabalhadores em operação. O capital é uma relação social e como tal existia mesmo antes do capitalismo.

Como afirma Marx, o capitalista é “apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital. O capital tem apenas um impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais-trabalho” (MARX, 1988, p. 179-180). A relação entre capital e trabalho tornou-se um círculo vicioso imprescindível para a autorreprodução do primeiro. Esta lógica precede a vontade do capitalista e pode se impor ao trabalhador através de formas mutáveis de dominação. Ao capitalista, “resta apenas demonstrar sua competência enquanto realizador dos desígnios acumulativos e expansionistas do capital” (PANIAGO, 2007, p. 30).

Mészáros (2002) afirma que o sistema do capital é singular na história, pois se trata de um sistema de controle sem sujeito. Isto significa que “as determinações e os imperativos objetivos do capital sempre devem prevalecer contra os desejos subjetivos (…) do pessoal controlador que é chamado a traduzir esses imperativos em diretrizes práticas” (MÉSZÁROS, 2002, p. 125). Assim sendo, os controladores humanos do sistema também estão sendo controlados pela lógica autorreprodutiva do capital e a ela devem se submeter.

Esta lógica se baseia na alienação e degradação do trabalho – sujeito real da produção social – à condição de mero fator de produção. Apesar disso, o trabalho não pode deixar de ser este sujeito real. Sem o trabalho não há qualquer possibilidade de acumulação de capital.

Para desempenhar suas funções produtivas, com a consciência exigida pelo processo de produção como tal – sem o que deixaria de existir o próprio capital -, o trabalho é forçado a aceitar um outro sujeito acima de si, mesmo que na realidade este seja apenas um pseudosujeito. Para isto, o capital precisa de personificações que façam a mediação (e a imposição) de seus imperativos objetivos como ordens conscientemente exequíveis sobre o sujeito real, potencialmente o mais recalcitrante, do processo de produção (MÉSZÁROS, 2002, p. 126).

Ao descrever o papel da personificação do capital, Mészáros (2002, p. 717) afirma que:

Na qualidade de personificações do capital – que devem responder ao desafio geral do antagonismo estrutural e às manifestações necessariamente específicas nas suas próprias situações -, os sujeitos particulares controladores não podem jamais ser agregados plenamente em um todo racionalmente sustentável. Eles são constituídos não apenas como uma “consciência econômica” abstrata e orientada-para-a- eficiência, mas simultaneamente também como uma vontade combativa. Sem esta última não seriam capazes de cumprir as funções a eles designadas, e portanto não teriam qualquer sentido do ponto de vista do capital. Sua racionalidade, na busca econômica pelo capital da autorreprodução ampliada em geral, assim como em relação ao sucesso econômico dos seus empreendimentos particulares, está estritamente circunscrita pela necessidade de reproduzir seu comando sobre o trabalho localmente e na sociedade em geral, o que deve tomar procedência sobre a denominada “racionalidade instrumental” do seu “cálculo econômico” idealizado, tão caro aos corações apologistas, passados e presentes, do sistema.

Como afirmado acima, a simples mudança da titularidade, dos antigos donos dos meios de produção para os trabalhadores, não modifica as pressões sofridas através do mercado e a exigência por constante expansão da acumulação do capital.

Para Paniago (2008), o duplo papel exigido aos trabalhadores, de ser a personificação do capital ao mesmo tempo que devem ser a personificação do trabalho, leva ao processo de autoexploração. Para a autora, “esse hibridismo tem uma consequência política da maior gravidade, pois leva os indivíduos envolvidos a renunciar à luta contra o modo de produção capitalista, restringindo-a à luta contra o modo de repartição capitalista” (PANIAGO, 2008, p. 10).

A possibilidade de uma autoexploração causa estranhamento já que para Marx, a exploração é uma relação social. Mas como lembra Mészáros (2002), o papel de personificação do capital não se restringe apenas aos capitalistas. O aumento da produção de mais-valia pode ser obtido a partir de exigências como o aumento da jornada de trabalho e/ou a diminuição do valor de reposição da força de trabalho. Essas são situações que se encontram, de forma corriqueira, nos empreendimentos autogestionários. Nas palavras de Luxemburgo (1986, p. 88),

Daí uma cooperativa de produção ter a necessidade, contraditória para os operários, de se governar a si própria, com toda a autoridade absoluta necessária e de os seus elementos desempenharem entre si o papel de empresários capitalistas. Dessa contradição morre a cooperativa de produção, na acepção em que se torna uma empresa capitalista ou, no caso em que os interesses dos operários são mais fortes, se dissolve.

Não são menos importantes os casos em que uma parte dos trabalhadores se cristalizam como direção do empreendimento, retomando uma divisão entre a concepção e a execução do trabalho, preservando um elemento fundamental do trabalho alienado (VIEITEZ e DAL RI, 2001).

Para Paniago (2008, p. 11) isto acontece porque,

A relação entre o capital e o trabalho é estruturalmente hierárquica e antagônica, e sobrevive a toda variação de relação de propriedade (personificações de capital) que se procure inovar. Ainda que a noção emancipatória apareça de forma pouco precisa nas experiências relatadas, todas se apresentam como alternativas ao trabalho assalariado e meio de superação das iniquidades socioeconômicas cada vez mais acentuadas pelo sistema dominante do capital. Procura-se (como se fosse possível) realizar a igualdade na organização do trabalho entre os associados, juntamente com a aceitação da igualdade impositiva dos critérios de eficiência econômica da lógica do lucro que contrariam essa mesma igualdade. Transformam-se, assim, em reguladores de sua autoexploração, aumentando a desigualdade da distribuição do produto excedente fora da fábrica e a intensificação do trabalho (ou seja, aumento da mais-valia produzida) no interior da fábrica, pois a acumulação, concentração e expansão do capital permanecem aí os indicadores de sucesso do empreendimento .

As limitações observadas permitem concluir que as cooperativas e seus trabalhadores correm os riscos dos proprietários de capital sem possuir as suas benesses. Mesmo nos casos em que as recuperações são bem sucedidas, as disputas no interior do mercado ou, mesmo, a intensificação da crise podem colocar novamente os trabalhadores em situação vulnerável.

Considerações finais

Ao analisar o momento em que nos encontramos é possível verificar o esgotamento das alternativas do capital frente à sua crise estrutural. Este esgotamento leva a um aprofundamento dos mecanismos de exploração da força de trabalho e, por sua vez, ao aumento do controle e da repressão cada vez que o trabalho se organiza para resistir. O movimento autoexpansivo do capital não pode ser freado ou mesmo retardado e a sua lógica sociometabólica não pode ser reformada. Sendo assim, a busca da emancipação humana da exploração do capital não pode ser encontrada em lógicas reformistas ou em melhoras etapistas. É preciso romper com a lógica reprodutiva do capital.

Em relação às experiências produtivas autogestionárias, apontamos que se trata de uma tática legítima e necessária de sobrevivência dos trabalhadores frente à perspectiva de desemprego que acaba por transferir a responsabilidade da falência do empreendimento para as mãos dos trabalhadores, obrigando-os, assim, a assumir as tarefas dos gestores do capital (como contratar e demitir). Por estar inserido em um modo de produção de relações hierárquicas, essas empresas sofrem fortes pressões do mercado por parte dos seus fornecedores, clientes e concorrentes, fixando preços e prazos, diminuindo a margem de planejamento no interior da empresa, o que acaba por determinar o ritmo da produção, podem levar, ainda, a um aumento da extração de mais-valia, através do aumento da jornada de trabalho ou com a diminuição dos valores retirados pelos cooperados (reposição da força de trabalho).

Reconhecer os limites das experiências autogestionárias não significa contrapor-se às mesmas. Trata-se apenas de reconhecer que elas fazem parte do conjunto de alternativas da fase defensiva contra o capital. Por isso, não são alternativas para a superação do modo de produção capitalista. A tarefa que a classe trabalhadora tem pela frente é superar iniciativas de caráter defensivo e organizar o movimento ofensivo contra o capital.

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Notas:
[1] Mestrando em Estudos Organizacionais no Programa de Pós-Graduação em Administração PPGA-UFRGS- moreirazamora@gmail.com
[2] Muitos dos empreendimentos analisados não se enquadram como cooperativa em sua forma jurídica, sendo em alguns casos, sociedades de responsabilidade limitada, sociedades anônimas, empresas sem registro formal, entre outros. Apesar disso, o seu funcionamento interno segue a lógica das cooperativas. Da mesma forma, excluem-se desta análise as cooperativas de caráter patronal.
[3] Markovic (2001) entende a autogestão, em seu sentido restrito, como a participação direta dos trabalhadores na tomada de decisão dentro da empresa. Um sentido mais amplo envolveria a organização da sociedade através de conselhos operários. Para Misoczky (2013), a adoção desse conceito carrega junto a ideia de gestão que está relacionada à racionalidade instrumental econômica, isto é, indissociável de direção e controle. Assim, o conceito de autogestão é contraditório.
[4] Os autores citam a recuperação pelos trabalhadores de uma fábrica de máquinas de escrever no final da década de 1990 (VIEITEZ e DAL RI, 2001).
[5] Em Paniago (2008), a autora relata o caso de uma fábrica recuperada de cobertores que sofreu práticas de concorrência desleal de uma empresa mexicana que importava para o Brasil um produto semelhante por um valor que na época representava a metade do preço do similar nacional.
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Referências:

HARVEY, D. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011. LUXEMBURGO, R. Reforma social ou revolução? São Paulo: Global, 1986.
MARKOVIC, M. “Autogestão”. In: BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2001.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro Primeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
MATHIAS, F.; ZAMORA, M. “Do casulo à borboleta? Perspectivas para o socialismo no século XXI”. In: anais do IV Encuentro Internacional Economia Política y Derechos Humanos. Setembro de 2010. disponível em: www.madres.org/documentos/doc20100927105409.pdf. Acesso em 25 de julho de 2014.
MÉSZÁROS, I. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009.
______. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
______. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007.
MISOCZKY, M. C. “Das práticas não-gerenciais de organizar à organização para a práxis da libertação”. In: MISOCZKY, M. C.; FLORES, R. KRUTER; e MORAES, J. (Org.). Organização e Práxis Libertadora. Porto Alegre: Dacasa Editora, 2010, p. 13-57.
______. “Homenagear Tragtenberg retomando as ideias e conceitos da matriz revolucionária”. In: Espaço Acadêmico, v. 13, n. 150, novembro de 2013. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/21898. Acesso em 25 de julho de 2014.
NOVAES, H.T. O fetiche da tecnologia. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
PANIAGO, M.C. Mészáros e a incontrolabilidade do capital. Maceió: Edufal, 2007.
______. “Os meios que se perderam dos fins: cooperativas fabris e autogestão dos trabalhadores”. Outubro, n. 17, p. 209 – 232, 2008.
TRAGTENBERG, M. Burocracia e ideologia. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
VIEITEZ & DAL RI, Trabalho associado: cooperativas e empresas de autogestão. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

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Resumo: Empreendimentos produtivos autogestionários como cooperativas, fábricas recuperadas e coletivos de economia solidária têm sido apresentados como alternativas do trabalho à lógica do sistema orgânico do capital. Essas experiências ganharam força com o recrudescimento do desemprego estrutural na década de 1990 na América Latina e vêm apresentando um crescimento importante nos países centrais que foram fortemente atingidos pela recente erupção da crise estrutural do capital. A presente reflexão aponta, a partir do materialismo dialético, os limites dessas experiências na tentativa de superar a lógica sociometabólica do capital. Este trabalho se apoia nas reflexões de Rosa Luxemburgo e István Mészáros, bem como nas reflexões contemporâneas de Cristina Paniago. Ambos autores afirmam que ao herdar as condições políticas e econômicas de empresa no mercado capitalista, os trabalhadores se obrigam a assumir as funções de personificação do capital. Sendo assim, a superação jurídica da propriedade dos meios de produção não é suficiente para a derrocada do sistema orgânico do capital.

Palavras-chave: autogestão, crise estrutural do capital, personificação do capital.

Resumen: Emprendimientos productivos en autogestión como cooperativas, fábrica recuperadas y colectivos de economía social y solidaria han sido presentados como alternativas del trabajo a la lógica del sistema orgánico del capital. Esas experiencias ganaron impulso con el recrudecimiento del desempleo estructural en la década del 1990 en América Latina y viene presentando un crecimiento importante en los países centrales que fueron directamente perjudicados por la reciente erupción de la crisis estructural del capital. La presente reflexión apunta, a partir del materialismo dialéctico, los límites que esas experiencias tienen en el intento de superar la lógica socio metabólica del capital. Este trabajo se apoya en las reflexiones de Rosa Luxemburgo e István Mészáros, como en las reflexiones contemporáneas de Cristina Paniago. Ambos los autores afirman que al heredar las condiciones políticas y económicas de empresa en el mercado capitalista, los trabajadores se obligan a asumir las funciones de personificación del capital. De esta manera, la superación jurídica de la propiedad de los medios de producción no es suficiente para la derrocada del sistema orgánico del capital.

Palabras clave: autogestión, crisis estructural del capital, personificación del capital

Summary: Self-managed productive enterprises as cooperatives, recuperated factories and collective solidarity economy have been presented as alternatives to the logic of organic working capital system. These experiences gained strength with the rise of structural unemployment in the 1990s in Latin America and have been showing significant growth in the core countries that have been hit hard by the recent eruption of the structural crisis of capital. The present reflection points, from dialectical materialism, the limits of these experiments in an attempt to overcome social metabolic logic of capital. This work relies on the reflections of Rosa Luxemburg and István Mészáros, as well as in contemporary reflections Cristina Paniago. Both authors say that inheriting the political and economic conditions of business in the capitalist market, workers are obliged to assume the functions of personification of capital. Thus, overcoming the legal ownership of the means of production is not sufficient to overthrow the organic system of capital.

Keywords: self-management, structural crisis of capital, personification of capital.
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ZAMORA, M. A. M. “Autogestão e emancipação dos trabalhadores: limites das cooperativas na produção capitalista”. In: Rebela, v. 4, n.1, jan./abr. 2014.
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sábado, 3 de janeiro de 2015

A Lebensphilosophie e o sentido da vida


por Paulo Ayres
 
A “filosofia da vida” (Lebensphilosophie) não se trata de uma corrente bem definida, muito menos de uma escola de pensamento que agrupe intelectuais e/ou artistas em torno de uma problemática e proposta (mesmo porque “escolas” de pensamento assim muitas vezes são rebeldes a rótulos, chegando a arrebentar a classificação que as amarra, não deixando outra escolha para o classificador a não ser ver se aquilo que os une ou unia seus representantes é, de fato, objeto de um programa abrangente). Lebensphilosophie é uma tendência geral de um período com uma capacidade de transcorrer por barreiras e abarcar algumas correntes distintas.

De acordo com Lukács (1959), a “filosofia da vida” é a ideologia predominante na Alemanha em todo período imperialista clássico. A Primeira Guerra Mundial é um divisor de águas para essa tendência. Para se ter uma ideia, antes da guerra, o único neokantiano explicitamente filiado à “filosofia da vida” era Simmel; com a guerra, o caminho para essa ladeira teórica se estende, atraindo para esse declínio o neo-hegelianismo e a escola de fenomenologia husserliana.

A “filosofia da vida” é a tônica burguesa no pós-guerra (Primeira Guerra). Ela ultrapassa o campo restrito da filosofia, influenciando diversos campos das ciências humanas e artes, como a sociologia, a psicologia, a historiografia e a literatura. É uma época em que vai aumentando a influência de Nietzsche nos círculos de escritores, mas não apenas dele: Weiniger (influência de Dilthey), Rathenau (influência de Simmel) e a escola poética de Stefan George (influência de ambos). O predomínio dessa tendência na Alemanha imperialista é fruto da situação sócio-histórica em que atravessava o país. A nação que passa pela via prussiana desenvolve um irracionalismo tão potente quanto a potência dos áureos tempos de sua filosofia clássica — com a diferença de que essa decadência subjetivista prepara o espírito alemão rumo ao mais tenebroso fim: o nazifascismo.

Se a “filosofia da vida” é produto da fase imperialista, não significa que é um fenômeno exclusivamente alemão. Bergson, por exemplo, é o grande representante vitalista na França (o vitalismo e a Lebensphilosophie se interpenetram, embora não sejam sinônimos). O que transpassa os territórios nacionais é a função conservadora que essa tendência desempenha: um elo a mais no desenvolvimento da tradição irracionalista, perante o desenvolvimento social e da luta de classes. A posição da burguesia imperialista e sua intelectualidade parasitária é focalizar uma concepção de mundo que tenha como missão essencial explicar uma realidade de crises intensas. A trajetória da “filosofia da vida” anterior à Primeira Guerra começa com Nietzsche, por ele ser o fundador do irracionalismo da etapa imperialista e não necessariamente por ele próprio ser um representante da “filosofia da vida” (aliás, não fica muito claro se ele ou o Dilthey é que é “o pai da criança”). O fato é que tal concepção cai como uma luva para se entender as crises que ocorriam como uma “crise da cultura”.

Isso está vinculado a uma característica marcante da “filosofia da vida”: a filosofia alemã pré-imperialismo foi, majoritariamente, uma filosofia de cátedra (e com caráter antidialético), enquanto a etapa do capital monopolista vai engendrar “pensadores marginais” na tradição irracionalista (Eduard von Hatmann, Nietzsche e Lagarde). São esses filósofos que não podem se dar ao luxo de dar às costas ao movimento histórico como um processo de contradições, como foi feito no período neokantiano posterior à dissolução do hegelianismo. A crise da sociedade capitalista imperialista é o tema abordado por Nietzsche (obviamente não nesses termos, pois sua metodologia empobrecida não poderia diagnosticar precisamente) e é por isso que só depois de dois acontecimentos histórico-mundiais de repercussões fortíssimas (a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa) é que vai aumentando o número de seus leitores e seguidores. Há uma explicação objetiva para que antes da segunda década do século XX a “filosofia da vida” ter um desenvolvimento lento e depois se acelera consideravelmente a sua influência.

Essa explicação precisa que deixemos agora as pinceladas de sua contextualização histórica e prossigamos com o conteúdo do objeto em si. O que já não era sem tempo. Pois o que é essa “filosofia da vida”? É preciso que se diga logo: não tem nada a ver com a filosofia da natureza (marcante até o início do século XIX) ou uma filosofia da biologia — um termo mais recente que, se não é usado de maneira trivial (como falar em filosofia da educação, filosofia da geografia, filosofia do handebol etc.), pode insinuar algo como uma ontologia do ser orgânico (aí sim algo profícuo). Contudo, ao dizer aquilo que não é, se abre o caminho para dizer também que ela está no polo oposto. Oposto à objetividade de uma filosofia do natural e biológico, Lebensphilosophie é filosofia subjetivista. A mira dessa “filosofia da vida” está direcionada para a “vida” significando “vivência”.

A “vivência” é enaltecida como objeto filosófico central. “Vivência” objetivada como vida e vida subjetivada como “vivência”. A velha pergunta filosófica, mais manjada que paletó de evangélico, sobre “qual é o sentido da vida?” ganha destaque em época em que predomina a angústia como sentimento generalizado perante períodos de crises violentas. Coutinho (2010), explica esse oscilar do espírito predominante de uma época com base no próprio chão onde se erguem essas tendências: quando o predomínio é do sentimento de angústia perante catástrofes ou crises intensas há uma tendência para alguma expressão do irracionalismo moderno falar mais alto, quando o sentimento é de uma aparente segurança no sistema (e consequentemente na vida cotidiana), a tendência é o “racionalismo” formal (o miserável intelectualismo) ditar uma concepção de mundo que se sobressai.

Por isso a Lebensphilosophie é uma dupla resposta ao racionalismo. Tanto ao legítimo (o pensamento racional dialético e revolucionário, assumido pelo novo agente histórico transformador: a perspectiva da classe operária e do conjunto dos trabalhadores) quanto, aquele que é ilegítimo (a miséria da razão do reducionismo científico), Esse último corresponde à onda pseudorracional do positivismo (e suas ramificações) e contra ela o “qual é o sentido da vida?” aparece como oposição (oposição nas aparências, pois apesar de extremos nos seus conteúdos, as duas formas de decadência ideológica são complementares).

Da autoanálise de ótica ascética de Schopenhauer, recebendo contribuições importantes do pai do existencialismo (existencialismo primário e solitário do século XIX), Kierkegaard, mais os aforismos de proto-autoajuda de Nietzsche, a Lebensphilosophie, que vem em seguida, continua a linha em que a “vida” (vivência) é o campo no qual giram as preocupações filosóficas, Em vez de explicar o indivíduo (moderno e alienado) através de sua interação e posicionamento numa sociabilidade, vira-se o indivíduo do avesso para expor o que há dentro dele como condição de entender porque o mundo vivenciado é assim. Se o ponto de partida é o sujeito do individualismo metodológico não há o que fazer a não ser deixar a captação do real de lado como mera “representação" (no pior sentido schopenhaueriano, e, se abusar, no pior sentido berkeleyano).

E como é explícito que situações sócio-históricas concretas se refletem no plano das ideias, é possível perceber na trajetória da Lebensphilosophie uma caída considerável no seu nível filosófico a medida que as duas primeiras décadas do século XX se mostram de perturbações enfáticas no solo europeu. Não que o “subjetivismo do homem ilhado” perderia o fôlego, mas mudaria de roupagem (e nome) e ganharia a sua expressão mais forte no existencialismo heideggeriano. Antes disso o que houve foi o esgotamento de apenas uma maneira desse subjetivismo. A figura emblemática dessa situação é Oswald Spengler, que, segundo Lukács, possui um nível filosófico mais baixo que os outros pensadores que se destacam na “filosofia da vida”. Sua obra mais famosa, de caráter historiográfico-filosófico, permite até o duplo trocadilho de seu título revelador. A decadência [declínio] do Ocidente faz parte da decadência ideológica burguesa, obviamente, mas, além disso, ironicamente o que ela revela é a decadência dessa própria decadência: a Lebensphilosophie descendo a ribanceira.

O caminho da “filosofia da vida” é o atrofiamento. Até sobrar apenas referências apologéticas para ser usadas por algum demagogo oficialmente nazista. O que não significa que seja Heidegger o “algum demagogo” citado. Não é espaço aqui para debater a relação de Heidegger com o nazismo, pois, independente disso, ele e Jaspers marcam uma nova viragem na tradição irracionalista, em especial, no caso alemão, e inauguram o existencialismo do século XX (recuperando elementos de Kierkegaard). E não tem como negar que o autor irracionalista de Ser e tempo, apesar de todos os problemas, é um ponto alto, um “clássico”... um “clássico da decadência ideológica burguesa”, melhor dizendo

Mas o presente texto não tem por objetivo o existencialismo, por isso nem vamos entrar propriamente nesse assunto. Há apenas a sinalização de que um substitui o outro no fio condutor do irracionalismo moderno. E essa passagem de bastão não é uma divergência profunda de posições filosóficas, mas uma dupla característica: um novo estado de ânimo com a “tônica do desespero” (assinalada por Lukács) e a envergadura que Heidegger (principalmente) e Jaspers (e depois os existencialistas franceses) colocam esse subjetivismo num patamar mais enriquecido, apesar de lotado de mistificações (essa outra característica que marca a viragem é explícita). A diferença terminológica, por sua vez, não ocorre sem razão: a “filosofia da vida” com o emblema da “vida” se substitui pelo emblema da “existência”. O adjetivo “existencial”, por exemplo, será saturado de significação angustiante e solitária (sentido que ecoa até hoje).

O próprio Heidegger (apud Inwood, 2002) conclui:

Lebensphilosophie, “filosofia de vida”, é, intrinsecamente uma tautologia, pois a filosofia não lida com coisa alguma, exceto com o próprio Dasein. A expressão “filosofia de vida” é, portanto, quase tão inteligente quanto botânica das plantas”.

A roda do irracionalismo gira e a pergunta “qual é o sentido da vida?” continua como aquilo que é: uma pergunta sem sentido, que só faz sentido quando surge aqueles comentados momentos de angústia. Ou seja, quando se raciocina de forma rarefeita e entramos numa crise psicológica — e não uma “crise existencial” (mas isso já é assunto para quando for abordado o existencialismo).

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Bibliografia:
COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
INWOOD M. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 198.
LUKÁCS, G. El asalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Trad. de Wenceslao Roces. México/Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1959.
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