domingo, 18 de junho de 2017

A ironia realista dos dândis revoltados


por Paulo Ayres
 
Minha vida é tão confusa quanto a América Central
por isso não me acuse de ser irracional.
(EngHaw/Humberto Gessinger)

O disco amarelo da engenharia havaiana está completando 30 anos. Obra-prima que surge na efervescência do movimento BRock (rock brasileiro oitentista), A revolta dos dândis (Brasil, 1987) é um excelente vinho que fica mais aprazível à medida que envelhece e, assim, este aspecto de ser datado se salienta na obra (paradoxal? Não, apenas uma característica dialética da arte realista, particular-historicizante e universal-humanista ao mesmo tempo). No calor do momento, era apenas mais um outro bom disco de hits das bandas mais destacáveis do movimento ou, quando em atrito, no contato superficial, despertou a desconfiança e o olhar torto de alguns: estes engenheiros do curso de arquitetura da UFRGS seriam um grupo de gaúchos elitistas e niilistas (chamados até de fascistas) que, vindos de longe demais das capitais (Rio-Sampa, e Brasília também no caso do rock), destoariam da diversão brega, do progressismo engajado e da acessibilidade popular dominantes no rock brasileiro. Se tivesse sido a banda de um disco só, tal rótulo não estaria tão inadequado assim, porque o álbum de estreia (Longe demais das capitais, 1986), além de apresentar um ska-rock/new wave modesto, abraça com gosto o irracionalismo moderno com aura existencialista-blasé, seguro desta posição e fechado nela. Daí que apresentar um segundo disco potente e realista como este é algo que causa mais surpresa.

Numa leitura superficial, no entanto, A revolta dos dândis (e alguns discos subsequentes) continuaria filiada à defesa do derrotismo irracionalista. Leitura “que não passa de ilusão”. Os Engenheiros do Hawaii — ou se quiser, Humberto Gessinger, o mentor da banda que se confunde com ela própria se desdobram tanto numa sucessão de ironias e lamentos autorreflexivos ("quando se anda em círculos nunca se é bastante rápido") que não boiam no moralismo niilista, mas, ao contrário, fazem do moralismo niilista o objeto de análise, isto é, um objeto ironizado, neste caso. Os dândis revoltados (o título do álbum retirado do nome de um capítulo de O homem revoltado, de Albert Camus já traz uma carga irônica com o estereótipo de pequeno-burguês romântico e hipsterizado) não vem apresentar o discurso do alto do sua falsa iconoclastia, de nariz em pé, achando que está alheio à pendenga entre Fidel e Pinochet, mas é observado como parte deste nosso mundo antagônico, refletindo suas contradições e, no fim, sendo um elemento que se posiciona sobre esta realidade social (o "bater em retirada" típico do niilismo é visível na sua melancólica covardia). Deste modo, a canção mais famosa do disco (e de toda a discografia da banda), “Infinita Highway”, sintetiza esse dilema interno com sua estrutura longa e "ficcional". Seria muito simplório, para não dizer boboca, se a metáfora da rodovia, como suspensão filosófica do caos antagônico da cidade, fosse só isso e o puro discurso individualista-masturbatório afirmado. Há um diálogo implícito dentro do aparente monólogo. Um casal, um duo. Representando duas visões de mundo distintas. Temos acesso a este debate filosófico através da fala do eu-lírico, masculino e, tudo indica, um dândi existencialista de saco cheio deste mundo estranhado (aquela velha revolta desfocada do anticapitalismo romântico). Sabemos pouco, bem pouco, da garota com quem o eu-lírico procura estabelecer um pacto, mas se percebe que ela questiona certos arroubos niilistas do rapaz. Ela é a voz da razão (Vernunft) que não cede facilmente aos encantos do “foda-se” individualista-irracionalista e que pode desligar o telefone na cara dele, caso este papo filosófico de boteco fique "muito abstrato" (ela não está viajando junto, mas possivelmente ele está tentando convencê-la de ir por essa highway em sua companhia). A sobriedade da garota/razão está tão bem posta que o eu-lírico existencialista precisa fazer uma concessão nas suas fantasias de “livre arbítrio”: “tudo bem, garota, não adianta mesmo ser livre/se tanta gente vive sem ter como viver”. Nessa frase, que é a frase-chave da canção e do disco, a fuga egocêntrica se mostra na sua fragilidade. 

E qual é este lugar tenebroso do qual (quase) todos nós gostaríamos de fugir? A resposta é o título de outro dos singles mais célebres de Gessinger e sua turma: “Terra de Gigantes”. Para alguns, esta balada melancólica é o suprassumo do pessimismo. Não é bem assim. Ou melhor, não se deve confundir o eu-lírico, um dândi lamentador entre deprê e blasé, com a mensagem passada, pois há sinalizações de realidade para além do que este eu-lírico representa. No conteúdo, não tem nada de universal (“pois, agora, lá fora todo mundo é uma ilha...”, isto é, “agora”, não “sempre”). Ou seja, não é sobre a passagem para a fase adulta e o desencanto disso propiciado pela vida humana. É sobre a passagem para a fase adulta e o desencanto propiciado em um cotidiano burguês determinado historicamente. E, se quisermos ser mais específicos, é o lamento de um jovem médio-classista e “cabeça” percebendo que a juventude prafrentex, por mais barulho que faça, tende a terminar “como nossos pais” (para citarmos Belchior). Entre hippies e punks, entre DCEs e cirandas, a geração Coca Cola se atola na transgressão (legado foucaultiano). Diferente dos jovens chineses, coreanos, cubanos e vietnamitas que, na segunda metade do século XX, abalaram as estruturas, esta juventude faz, no máximo, uma algazarra nas superestruturas. Deste modo, a “terra de gigantes” (selva capitalista) continua firme e forte trocando vidas humanas (com sua força de trabalho sugada, inclusive) pela riqueza mercantil, por diamantes.

O que desperta a revolta destes mauricinhos conscientes (refiro-me tanto aos músicos-autores quanto aos eus-líricos) é perceber que estão dentro de um processo bem mais complexo que o preto-no-branco, isto é, que estão entre polos contraditórios num movimento de enfrentamento e reciprocidade os “dois lados da mesma moeda”. Isso corrobora perfeitamente com a forma de composição de Gessinger, um estilo personalíssimo em sua dosagem, cujos ingredientes dos versos são: antíteses (ideias contrárias), aliterações (utilização das mesmas consoantes), assonâncias (uso seguido das mesmas vogais), paronomásias (palavras de sons semelhantes), além das referências explícitas e implícitas a fatos históricos, teorias e obras artísticas. A dialética é, justamente, o assunto das duas faixas que dão nome ao álbum e a ignição nessas duas viagens aceleradas são dois toques introdutórios; uma espécie de vinheta ligeira que ajuda a destacar as duas faixas como momentos de síntese da obra (faixas, aliás, com roupagem folk feita pelo violão de Augusto Licks). Por isso estas letras do Bob Dylan dos pampas seguem o esquema de ligar vários pares contraditórios através da localização ontológica (“A Revolta dos Dândis I” usa o termo “entre”) e da subjetividade do sujeito (“A Revolta dos Dândis II” diz “já não vejo diferença entre” tal coisa e tal coisa). Assim sendo, neste tertium datur cantado de polos naturais (real e abstrato) e polos sociais (lutas de classes, época da Guerra Fria), se reflete o mundo do capitalismo tardio e a situação do indivíduo atomizado-burguês que o habita. E se “A Revolta dos Dândis II” parece pouco dialético, e mais para sofista e niilista, é porque é necessário enxergar esta canção como complemento da outra e ver para além do subjetivismo do eu-lírico. Isso é sugestionado pela letra que indica uma opinião, um olhar (“já não vejo” é a expressão repetida), além disso, o eu-lírico de “A Revolta dos Dândis I” surge, no final desta sexta faixa, com outro timbre de voz a voz da sobriedade, da razão, ora pois , repetindo alguns versos da primeira faixa, entre eles o sugestivo “entre a loucura e a lucidez” que separa o que o eu-lírico irracionalista tinha juntado com o seu subjetivismo (“já não há mais diferença entre a raiva e a razão”). Fazendo um jogo de luz e sombra, “A Revolta dos Dândis II” é o momento de loucura (e não “Vozes”). Deste modo, quando a ideologia irracionalista questiona o caráter dialético do real, a lucidez correspondente (a razão dialética) retorna e joga luz sobre esse fato. É essa lucidez, aliás, que faz da faixa mais carregada de ironia, a quinta (“Filmes de Guerra, Canções de Amor”), uma crônica cínica, mas precisa. Assim como a clássica “Ouro de Tolo” do Raul Seixas, a vida cotidiana (Alltasgslebens) burguesa é ridicularizada sem dó nem piedade (com direito ao brasileiríssimo acompanhamento carnavalesco ao fundo do rock que está em primeiro plano). “Não me peça pra entender/esquecer/escolher" pede o sujeito (ou sujeitos, visto que Carlos Maltz divide os vocais nessa). O “fio ciumento” do amor burguês e o “frio do campo de batalha” das guerras não têm nada de nobres e honrosos. São artigos tão comerciais quanto suas representações no gênero temático-cinematográfico de “filmes de guerra” e no gênero temático-musical das “canções de amor”.

Por falar em canções de amor, há duas faixas cujo tema é o amor romântico, “Refrão de Bolero” e “Desde Aquele Dia”. Nenhuma delas faz a manjada romantização deste amor burguês. O que temos nas duas é o “fim do mundo todo dia da semana” de um cara que teve a vida emocional revirada por estar obcecado pelos lábios labirínticos de uma tal de Ana e pelo “rosto de menina” de uma “heroína”. O tom trágico dita essas lamentações. 

Labirintos, círculos, highway, velocidade, pressa, caminhos, fronteiras... o disco A revolta dos dândis é a ilustração de uma viagem de tomada de consciência social, porém sem consciência de classe por parte dos eus-líricos. Afinal, eles são anticapitalistas românticos e nós, através do feeling adequado de Gessinger nas letras, os enxergamos ou melhor, ouvimos nas suas insuficiências e deslizes nesta postura de revolta desorientada. Assim, pode parecer uma recomendação clichê, óbvia, mas é necessário sempre demarcar a diferenciação (que pode haver) entre o autor da obra e os personagens (no caso da ficção) e entre o autor da obra e os eu-líricos (no caso da lírica: poemas e canções). E, além disso, é necessário atentar para uma particularidade do complexo artístico: às vezes, a obra de arte transcende as visões de mundo viciadas de determinado autor e, até ganhando vida própria para além deste “perfil pessoal" do artista, se constitui como grande arte, ou seja, como arte realista/humanista. Eis o fenômeno que Marx, Engels e Lukács percebem como o triunfo do realismo. Daí que não é nenhum absurdo que o monarquista Balzac tenha produzido arte realista e que o cineasta realista Scorsese, no plano pessoal, não seja socialista, isto é, não tenha consciência de classe (não sei das opiniões político-econômicas do diretor norte-americano, estou usando apenas para exemplificar). Portanto, não se deve cometer a mesma injustiça com os Engenheiros do Hawaii que Lukács cometeu com Kafka e Proust (sim, até o mestre dos estudos estéticos pode tropeçar e não aplicar corretamente seu próprio método em análises de determinadas obras). Nos ensaios de Realismo crítico hoje, o filósofo húngaro faz uma análise superficial, apressada, de romancistas tidos como vanguardistas, não se atendo a leitura imanente de suas obras, mas se baseando nas suas temáticas e o que eles disseram em entrevistas sobre suas respectivas concepções ideológicas. Independente se Kafka era fã de filosofia existencialista, o fato é que sua obra transcende o vanguardismo (reduto literário onde se canaliza essa visão irracionalista-filosófica) e revela a essência do cotidiano do pequeno-burguês alienado no capitalismo monopolista. Mutatis mutandis, é a mesma coisa quando falamos do feeling realista de Gessinger. Se ele é existencialista, católico ou umbandista na visão pessoal de mundo, não afeta a maioria de suas composições descontando-se, como foi dito, o primeiro disco da banda, em que não há, ainda, o triunfo do realismo. Na verdade, tal orientação ideológica afeta apenas na temática: muitas de suas canções, especialmente em A revolta de dândis, são sobre dândis irracionalistas, contudo, não se ajustando de maneira fechada a estes eus-líricos hipsters e revoltados, e sim se aprofundando na autorreflexão irônica que permite detectar as antinomias e limitações destes personagens poéticos.

Até mesmo porque, se Sartre e Camus comparecem em A revolta dos dândis não significa que suas filosofias sejam reverenciadas ao pé da letra. Aliás, a literatura de Camus, diferente da de Kafka, não consegue o triunfo do realismo, sendo um exemplo de canalização da ideologia existencialista (ou absurdista, como Camus chamava a sua própria corrente existencialista: algo que está ruim sempre pode piorar). Entretanto, não é problema o fato de o belo refrão da faixa “A Revolta dos Dândis I” fazer clara referência ao romance O estrangeiro, de Camus, pois a visão antropológico-individualista, o sentimento de recortado socialmente, é sublinhado na fala deste eu-lírico como isso mesmo: uma percepção, um sentimento (“eu me sinto estrangeiro, passageiro de algum trem...”) e não ontologicamente (“eu sou um estrangeiro, passageiro...”). Já Sartre (ou seria melhor dizer, “o primeiro Sartre”?) está presente até nominalmente no disco, mas a sua filosofia (uma repaginação da ideia de “livre-arbítrio” numa versão individualista e ateia) é colocada em dúvida sarcasticamente (afinal, “a dúvida não é o preço da pureza"?) e, para se defender, o eu-lírico, na última canção (“Guardas da Fronteira”), sugere que se está errado na sua crença em “liberdade absoluta”, o mentiroso não é ele, mas o pensador francês que o influenciou. Esta última faixa (com a participação de Júlio Reny cantando), aliás, é a culminação da viagem reflexiva que é A revolta dos dândis. O pequeno-burguês romântico está puto da vida. Com vontade de jogar o vaso na TV e esta pela janela. E se há a desconfiança de que o “livre-arbítrio” dos existencialistas seja um mito, por outro lado, o eu-lírico não parece nem um pouco a fim de ceder ao mito oposto, o determinismo (o refrão é antideterminista). Ainda bem. Lado B de bacana.

O lado B neste disco significa, também, baixo. Com exceção de “Vozes”, as canções deste lado possuem uma vibrante linha de baixo (tocado por Gessinger) em primeiro plano, deixando um clima soturno, principalmente nos momentos em que os antagonistas da humanidade e protagonistas da desumanidade se tornam mais nítidos para o eu-lírico (em “Além dos Outdoors”, “Quem Tem Pressa Não Se Interessa” e “Guardas da Fronteira”): as mercadorias. Elas são citadas, diretamente ou indiretamente, nas personificações do capital (o “eles” de “mas a razão é só o que eles têm” e “mas é assim que eles fazem” reapareceria na joia chamada “3ª do Plural”, composta por Gessinger, tempos depois) e, ostensivamente, em outdoors vistos neste percurso. É preciso, de alguma maneira, enxergar para além dos outdoors, além da nojenta publicidade, além do fetichismo de mercadoria (objetivamente, não podemos superá-lo dentro do mundo burguês, mas subjetivamente, ideologicamente, podemos ver além deste fetichismo). Afinal, diferente das aranhas que “não tecem suas teias, por loucura ou por paixão” (Marx também compara aranhas e abelhas com trabalhadores para destacar o que é ontologicamente próprio da humanidade), o ser social possui a capacidade de prévia-ideação onde projeta e escolhe entre um determinado leque de alternativas concretas e age de acordo com uma teleologia (intenção). Eis a concreta, a real, a materialista e dialética, liberdade. Aquilo que é tão buscado na viagem filosófica de A revolta dos dândis, mas o eu lírico revoltado avisa “você sabe o que eu quero dizer, não está escrito nos outdoors” e, não sabendo explicar adequadamente esta categoria da liberdade, oferece apenas o “silêncio sempre maior” como protesto impotente a este mundo estranhado (atitude que lembra o silêncio de Wittgenstein, mencionado por Lukács).

Quanto à frase “mas a razão é  só o que eles têm”, como o “eles” se refere aos apologistas diretos do capital , a “razão” criticada é o empobrecido e manipulatório racionalismo formal. Falta ontologia, falta ética, falta humanismo para esse objetivismo reificador que se atém ao entendimento (Verstand). Mas o que pode fazer um dândi romântico contra esse mundo e essa ideologia, já que a sua própria ideologia é tão unilateral quanto a “razão” (racionalismo formal) que ele critica? É na destoante “Vozes”, todavia, que há uma pausa no ritmo da pressa, da velocidade, para revelar como este eu-lírico recarrega as baterias na solidão reflexiva, pois é isto que quer dizer a “noite” na canção: um momento de refletir sobre as “revoltas banais”. Já “as vozes” podem ser interpretadas como as diferentes (e excludentes) correntes ideológicas tanto que a faixa seguinte trata das “vozes oficiais” da apologia direta. A falta de uma racionalidade objetiva contribui para o hipster se sentir um esquizofrênico, ora assustado ora atraído ora arrependido por determinadas ideias. A ambiguidade é que esta solidão, neste mundo burguês, lhe conforta e lhe machuca. E a enfermidade do relativismo e da inconstância surge na própria forma da canção: um desfecho arrebatador e ensolarado nos tira do cenário tristonho e abre um robótico reggae onde são reproduzidas as “vozes oficiais” de maneira eletrônica. As banalidades do dândi revoltado ficam expostas: a apologia indireta do mundo burguêsBeatnick ou bitolado? Beatnick e bitolado. Beatnick é bitolado. Possivelmente, um beck e um filme do Godard colocam as coisas no prumo para a  viagem de A revolta dos dândis prosseguir... até chegar o momento de jogar o vaso na TV. O dândi revoltado não é cool. Só está nu. Jogando strip poker com cientificistas, analistas e generais no vagão de um trem.

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[0] Escrito em: 15-16/06/2017.
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